Ficção e realidade se confudem em “Era o Hotel Cambridge”

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“O que há de São Paulo no filme?”, perguntamos a Eliane Caffé, a respeito de sua obra mais recente, o ainda inédito Era o Hotel Cambridge. A resposta da diretora pode ser resumida em um verbete: resistência. Coprodução Spcine com previsão de estreia para março deste ano, o longa-metragem joga luz sobre histórias de refugiados e sem-teto que ocuparam o prédio histórico durante pelo menos quatro anos. “O processo foi tão intenso e rico que o filme se estendeu para além do set”, conta a diretora, que desde então atua ao lado de outros coletivos, na luta pelo direito à moradia. O lançamento comercial está previsto para março de 2017.

Recentemente, a produção se sagrou como a grande vencedora do 11º Fest Aruanda ao levar os troféus de melhor atriz, para Sueli Franco, melhor longa segundo o júri Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e melhor longa segundo o júri oficial. O festival foi realizado entre 8 e 14 de dezembro, em João Pessoa.

A Spcine conversou com a cineasta sobre o seu mergulho vertiginoso no tema, o envolvimento com coletivos como a Frente de Luta por Moradia (FLM), a preparação artística dos refugiados que atuam no filme, entre outros assuntos. Confira o papo na íntegra:

Spcine: Como você chegou a história do Hotel Cambridge? Ou foi ela que chegou até você?

Eliane Caffé: Ambos [os caminhos]. Foi uma confluência entre ir e vir. Partimos da ideia de explorar a imersão do refugiado político na sua nova vida quando chega em São Paulo. O encontro com a cultura brasileira, a língua do “outro”, enfim, desafios que devem ser enfrentados para a sobrevivência em terra estranha. O que veio ao nosso encontro foi o mundo das ocupações e dos movimentos de luta por moradia. A figura do refugiado cada vez mais surge unida aos movimentos sociais de base. Este fato foi crucial para contextualizarmos a narrativa do filme no rico universo da ocupação “Cambridge”.

Spcine: O filme é a representação de uma realidade social contemporânea. Como foi encarar o tema da luta por moradia do processo de pesquisa até a produção?

E.C.: Durante o processo de pesquisa surgiu a ideia de erguermos o filme dentro de um tripé de coletivos. Além da equipe artística, também se uniram alunos de arquitetura da Escola da Cidade, sob coordenação da diretora de arte de Carla Caffé; a FLM (Frente de Luta por Moradia); e um grupo de refugiados que passou a se reunir periodicamente dentro do Cambridge. Esse processo foi tão intenso e rico que o filme se estendeu para além do set de filmagem, e hoje, muitos de nós estamos atuando na linha de frente do Movimento junto com outros novos coletivos.

 

Spcine: Como foi o primeiro contato com os refugiados e o desenvolvimento da linguagem artística deles?

E.C.: Ao longo da preparação do filme, realizamos algumas oficinas de dramatização com os moradores do prédio e também com o grupo de refugiados que convidamos para o experimento. O convívio frequente entre refugiados e brasileiros foi fundamental para erguermos um repertório comum de experiências que, na fase de filmagem, garantiu a autenticidade e entrosamento de todos.

Spcine: Você disse em entrevista para a Revista de Cinema que o filme foi erguido a partir de três coletivos desconectados com o cinema. Quando você se deu conta que o roteiro precisava de tamanho realismo?

E.C.: A formação desses coletivos foi aparecendo no processo em função dos vários problemas que surgiam, não apenas em relação à atualização do roteiro, mas, principalmente, pelas necessidades da produção. A falta prévia de financiamento, capaz de assegurar todas as fases do filme, foi determinante para buscarmos outras soluções e modelos de produzir cinema. Ou seja, a formação desses coletivos foi também resultado de esforços de várias pessoas pensando e criando juntas.

 

Spcine: Você continua próxima do assunto? Mantém contato com alguns dos personagens do filme?

E.C.: Sim. Como disse antes, o filme se estendeu muito no espaço-tempo e até hoje seguimos muito atuantes, inclusive fazendo parte da construção de novas ocupações que vêm ocorrendo na cidade.

 

Spcine: Quando o filme começou a ser rodado? Há época, como foi o processo de liberação para as gravações? Chegou a enfrentar alguma resistência?

E.C.: O filme foi rodado em novembro/dezembro de 2014. Acho que esse é um filme abençoado e que tudo sempre conspirou a favor dele. Nunca tivemos nenhum problema ou desgaste com a parte do movimento. Rodamos todo o filme dentro de uma zona de conflito, e o clima sempre foi agregador e lúdico.

 

Spcine: O que há de São Paulo no filme?

E.C.: A resistência das pessoas e famílias que lutam, diariamente, contra um sistema injusto e violento.

Spcine: Você pretende fazer alguma itinerância com o filme para dentro de prédios e moradias ocupadas por grupos sociais? Se já fez, como foi a receptividade?

E.C.: O primeiro impulso foi o de levar logo o filme para o interior das ocupações. Porém, creio que ver um filme onde ajudamos a erguer, projetado num telão e em meio a condições precárias de imersão, não seria a melhor forma de apresentar o resultado final. O que pretendemos é levar a população das ocupações até as salas de cinema, como, por exemplo, nas que a Spcine vem administrando. Esse seria o melhor modo de compartilhar um trabalho que é de todos e para todos.

 

Spcine: Em maio deste ano, a São Paulo Film Commission começou a operar formalmente, otimizando o processo de solicitação de filmagens na cidade. Entre maio e outubro, mais de 340 obras foram autorizadas, movimentando R$ 176 milhões. Gostaria de saber sua opinião sobre o potencial audiovisual de São Paulo.

E.C.: São Paulo é território fértil de experiências que há tempos atrai o olhar de artistas de vários outros estados e países. Como a questão urbana é um dos grandes tópicos de preocupação global para o século XXI, a tendência é aumentar mais e mais o foco da produção audiovisual.  Talvez, mais do que nunca, seria a hora de buscar programas de incentivo para a coprodução de São Paulo com outras regiões e realidades do Brasil e do mundo. Ou seja, estimular uma produção que ponha nas telas o diálogo e cruzamento entre os diferentes territórios culturais e imaginários que se misturam aqui. Aliás, essa polifonia de vozes culturais, desde sempre, é a própria natureza da cidade e do Estado. A diferença é que hoje o grau de hibridismo é muito, muito maior.