A essa altura você já assistiu a pelo menos um dos episódios de 3%, a celebrada série original da Netflix.
Situada em um período pós-apocalíptico, 3% exibe um Brasil dividido entre o Lado de Cá, onde 97% da população vive com recursos escassos, e o Maralto, território além-mar para onde vão os vencedores de um processo seletivo “único, cruel e intenso”, como define Pedro Aguilera, o criador.
A série chegou à plataforma em novembro passado como um movimento inédito para o audiovisual brasileiro. Os oito episódios da primeira temporada foram lançados simultaneamente em 190 países. O alcance só foi possível graças à adoção do projeto pela Netflix e o desejo de expansão internacional da empresa de streaming a partir do Brasil.
Antigo serviço de locação de DVDs pelo correio, com atuação limitada aos EUA, a Netflix só se consolidou de fato como uma marca global com o lançamento de conteúdo original. Começou com o drama político House of Cards, em 2013, bem recebido por público e crítica. Atualmente são cerca de 600 horas por ano de filmes e séries com o selo da plataforma. Segundo declarações de seus executivos à imprensa, a meta é chegar a 50% de todo o conteúdo oferecido.
Conforme a marca se expande – hoje são mais de 90 milhões de assinaturas pelo mundo -, a estratégia para se estabelecer em mercados estrangeiros passa pela produção de conteúdo local. “Para sermos um serviço global bem-sucedido, precisamos ser mais do que Hollywood para o mundo. Precisamos ser uma companhia que compartilha histórias do mundo todo”, defendeu recentemente o presidente Reed Hastings à reportagem da Bloomberg.
O Brasil – e seus mais de 100 milhões de internautas – é terreno fértil para os planos de consolidação internacional da empresa. Para se estabelecer no Brasil, a Netflix atuou junto a empresas de telecomunicações locais para aprimorar a infraestrutura de internet, adotou novos modelos de pagamento adequados à realidade brasileira e investiu em publicidade na TV aberta para reforçar a reputação da marca. Só faltava mesmo o conteúdo original.
A produção de 3% é o primeiro passo neste sentido. A trajetória que culminou na estreia global da série no último 25 de novembro, teve ares do processo seletivo do qual o nome da série origina. Começou como um projeto de conclusão de curso de Pedro Aguilera, na época estudante de cinema.
O roteiro baseou-se tanto na leitura de distopias como 1984 (George Orwell) e Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley) quanto na experiência do criador com o vestibular e a entrada no mercado audiovisual. Em 2009, 3% foi inscrito em edital específico para séries do Ministério da Cultura, o FIC-TV. A verba garantiu a produção do episódio piloto, versão diferente do que foi ao ar três anos depois, mas que atualmente circula no YouTube com mais de 180 mil visualizações.
Thiago Mello, produtor executivo da série, lembra da peregrinação para garantir que o projeto saísse do papel, com várias recusas de canais de TV pelo caminho. “Foram diversas negociações que incluíram inclusive eventos internacionais como o NATPE [National Association of Television Program Executives, mercado para conteúdos de TV sediado em Miami, EUA] e o MIPCOM [evento anual voltado a conteúdo multimídia realizado em Cannes, França]”, explica.
Erik Barmack , executivo da Netflix responsável pela estratégia de programação de novos mercados, ouviu falar da série por meio de um vídeo no site da revista Wired, justo quando a empresa buscava financiar seu primeiro conteúdo original brasileiro. O encontro aconteceu, as negociações avançaram e a primeira temporada de 3% saiu do papel. “Tivemos a tradução da série para mais de 20 línguas. É um passo bem importante para a produção do Brasil. Conseguimos mostrar a nossa criação e ideias para diversas realidades e contextos”, comemora Mello.
Apesar do nariz torcido por parte da crítica por aqui, a série teve boa repercussão internacional. O principal destaque era ao fato de se tratar de uma distopia à brasileira, algo até então inédito para o público estrangeiro. O site IndieWire elogiou a produção, destacando as reviravoltas durante a trama. O io9, site de ciências e entretenimento da Gizmodo, escreveu “‘3%’ tem uma poderosa e única história humana que começa a se revelar nos últimos episódios. Mais importante, é ficção científica a partir de um perspectiva não-americana.”
“Sempre acreditamos que seria a partir da dramaturgia, dos personagens, que a audiência conseguiria embarcar no universo do 3%”, revela Eduardo Piagge, responsável pela fotografia da série [confira entrevista exclusiva com Piagge aqui].
Para desenvolver a história, além de Pedro Aguilera, a sala de roteiristas contou com Dani Libardi, Daina Giannecchini, Ivan Nakamura e Jotagá Crema. “A experiência foi ótima e é fundamental investir em tempo e em número de pessoas. Uma série é um desafio muito grande pra ser conquistado rapidamente, ou por poucas pessoas”, sintetiza o criador.
No fim do ano passado, durante painel específico (e lotado) sobre 3% na Comic Con Experience, a Netflix confirmou a segunda temporada da série, pouco mais de uma semana após seu lançamento. Questionado sobre o futuro de Joana, Michele, Ezequiel e os demais protagonistas, Aguilera comenta: “Sem spoilers é difícil falar, mas dá para esperar um contínuo desenvolvimento dos personagens, acima de tudo. Além disso, um aprofundamento do universo em todos os sentidos.”